Ideias de Significado em Dança - o Balé

Dança, até a modernidade, esgotou a estética de sua linguagem. A narrativa da dança ocidental esteve subordinada à execução de padrões de movimento herdados da dança clássica europeia, em geral limitada a códigos que fazem referencia a imagens, situações e práticas cotidianas da Europa renascentista. A princípio o balé de corte, como era chamado, era utilizado como forma de interação social ou entretenimento, tendo incorporado posteriormente a noção de narrativa e mimese, o que contribuiu com o seu desenvolvimento até o formato de espetáculo que é reproduzido até a atualidade. Das cortes, onde era usualmente apreciado de cima dos camarotes nos salões reais, o balé ganhou os palcos dos teatros, o que requisitou dele um redimensionamento estético e narrativo, em função da nova perspectiva na qual ele passou a chegar aos olhos da plateia. Ao longo de três séculos a dança clássica foi continuamente reestruturada, até que no século XIX, com a fundação de grandes escolas de balé na Itália, França, Rússia e Inglaterra, o balé chega a um alto nível de destreza física e virtuosidade.

 

É inegável a eficiência técnica do treinamento em balé clássico. Seu mecanismo corporal contempla aspectos de força e flexibilidade muscular que, justamente por sua eficiência, justificam sua permanência enquanto prática em dança. No entanto, um fator a ser considerado é sua estreita abordagem temática, tendo em vista a complexidade da realidade contemporânea, com parâmetros de organização social distintos daqueles vividos até o século XIX.

 

Giselle, balé romântico estreado em Paris em 1840, apresenta a história de uma jovem camponesa que se apaixona por Albrecht, um nobre que está noivo de Bathilde, filha do Duque de Courland. Albrecht se encanta por Giselle e se disfarça de camponês para ir à festa da colheita da uva. Durante a festa Giselle tira a própria vida ao descobrir a verdade sobre Albrecht. O Lago dos Cisnes, balé romântico estreado em Moscou em 1877, conta a história de Odette, uma princesa transformada em cisne pelo mago Rothbart, e por quem se apaixona o príncipe Siegfried. Durante a festa de comemoração dos 21 anos do príncipe, Rothbart lança um feitiço que impede que Siegfried faça juras de amor eterno à Odette, o que quebraria o encanto do cisne. Desolados, Odette e Siegfried se lançam à morte.

 

Coppélia, La Fille Mal Gardée e Paquita também são balés do repertório clássico, cujas narrativas, ressonantes à de Giselle e O Lago dos Cisnes, se localizam em um momento histórico anterior ao século XXI. No entanto, para além da discussão acerca da relevância da atualização de um discurso da dança clássica, está a contestação de um tipo de pensamento e arquitetura corporal comum ao balé; um lugar onde a decodificação dos signos pertence, sob o meu ponto de vista, a um universo linguístico de forma geral pouco acessível – desconsidero o uso da pantomima, que por ser uma linguagem gestual e de expressividade facial, transmite informação de maneira comumente inteligível.

 

Para possibilitar maior clareza de ideias, convém explanar um pouco do que foi firmado enquanto forma pela prática do balé, buscando pontos de tangência ou divergência entre esta e aquilo no qual se tornou a noção de forma para a dança vanguardista da atualidade:

 

O processo evolutivo das formas em dança se aproxima do individuo de maneira tal a ser compreendido por este enquanto linguagem, do mesmo modo que uma criança apreende um idioma ou mesmo aprende a dar nome a uma árvore ou a uma borboleta. Às formas são atribuídos significados através da associação de certos elementos a certas ideias; e aqui, como em outras áreas de especialização que pressupõem a apreensão de determinado vocabulário, é necessário haver o estudo direcionado a ela, objetivando a compreensão da relação entre os signos e seus significados dentro de um universo linguístico.

 

Existe uma infinidade de combinações de membros do corpo do bailarino que compõem figuras que eu chamo de “pequenas formas”, pequenas por estarem encerradas nos limites de um corpo. O balé eternizou certas combinações através da criação de algo que poderia ser chamado “o dicionário da dança clássica”: uma compilação de poses e seus respectivos nomes, além de uma descrição precisa de como elas devem ser abordadas e executadas. Eu considero bastante pertinente o livro “Princípios Básicos do Ballet Clássico”, escrito por Agrippina Vaganova, criadora da tradicional escola russa de balé. Arabesque, Attitude, Écarté Devant, Degagé, Quarta Alongé, são exemplos das figuras estáticas que aqui chamo de “pequenas formas”.

 

Existem ainda inúmeras formas que implicam em uma trajetória através do espaço, são movimentos complexos que requerem deslocamento frontal e para cima, e que exigem a execução de poses em pleno decorrer do trajeto aéreo, como é o caso do grand pas-de-chat, do entrelacé e do saut-de-basque, para citar alguns.

 

Entretanto, para além das figuras estáticas e dinâmicas, em composições coreográficas busca-se obter grandes formações geometrizadas onde as formas carregadas por cada bailarino, bem como os deslocamentos horizontais, verticais, diagonais e circulares, representam instantes imagéticos dentro da completude composicional idealizada pelo coreógrafo. A estas macro composições eu chamo de “grandes formas” – aquilo que se apreende visualmente através da percepção da totalidade imagética da obra.

 

Mas o que efetivamente se entende nos dias de hoje da informação contida na visualidade das obras de balé clássico? Para mim esta questão está ligada ao nível de conhecimento da codificação do balé por aqueles que o assistem. Vale dizer que a narrativa apresentada pelos espetáculos são comumente repletas de elementos representantes da vida “real” e elementos oriundos de esferas fantasiosas, que como em qualquer outra narrativa é recebida e vivenciada pelo público de maneira pessoal. Mas no que toca especificamente a questão da linguagem formal do balé que é revisitada através dos corpos dos bailarinos, ou seja as sequencias coreográficas que permeiam as narrativas de espetáculos como O Quebra-Nozes, Manon e Don Quixote é a virtuosidade encerrada em um corpo. Ela impressiona por ser uma habilidade física muito distante das possibilidades mecânicas funcionais e rotineiras do corpo humano. Além desta, os desenhos geométricos e suas evoluções também são informações visuais presentes em cena que facilmente são lidas e interpretadas pelo espectador, ganhando assim significado.

 

A questão que aqui problematizo é a atribuição de valor absoluto à esfera basicamente formal dentro do oficio da dança, tanto a nível corporal – de formas reproduzidas no corpo do bailarino; quanto a nível estrutural coreográfico – de padrões formados pela organização estática e dinâmica do bailarino na cena. Desta forma, contrário ao que seria o uso das pequenas e grandes formas enquanto ferramentas que viabilizam o transporte de uma ideia de significado ao mundo, concede-se à esfera formal do balé a noção de possuir um significado em si. E há de se afirmar com alguma razão que tal semântica não atinge apenas o público leigo ou instruído. Não é incomum encontrar bailarinos e coreógrafos que entendem o próprio fazer a nível basicamente estrutural, no que se refere ao transporte através dos tempos de noções de pequenas e grandes formas. Em outras palavras, no treinamento em dança clássica, é comum ensinar-se o mecanismo de execução das formas, o “como fazer” em detrimento do “porque fazer”. De maneira mais afirmativa, o como virou o porquê. Isso talvez explique o restrito olhar e consequente limitada compreensão de obras da dança clássica pelo público leigo, uma vez que esta assumiu um lugar no qual seu significado se encerra no hermetismo de sua própria linguagem.

 

De forma que ao agrado dos amantes da dança em geral, fazedores ou não, não parece bastar a experiência do prazer estético-visual; é patente a necessidade de uma visão mais abrangente acerca da acessibilidade à compreensão de linguagens pouco popularizadas. Convém levantar a questão da relevância da reprodução de obras que atualizam um pensamento racional do fazer artístico que é estruturado sob a égide de “linguagens puras”, e cujo conhecimento é limitado a pequenos núcleos de indivíduos.

Isaac Araujo

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